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Brinquedos em mal estado para representar a depressão na infância

Cultura consumista e depressão podem ser relacionadas já na infância

Brinquedos em mal estado para representar a depressão na infância

Cultura consumista e depressão podem ser relacionadas já na infância

 

A cultura que estimula o consumo exagerado tem afetado crianças e adolescentes de formas diversas. Para entender a relação da cultura consumista e depressão na infância e juventude, o Criança e Consumo buscou a doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo e diretora do Instituto Gerar, Vera Iaconelli*, que atende jovens, adultos e famílias em sua clínica.

 

Nesta entrevista, Iaconelli problematiza sobre a importância dos objetos para a formação da identidade e afirma a necessidade de orientar pais e mães neste contexto de cultura consumista e depressão.

 

Criança e Consumo – Como essa sociedade consumista afeta a construção da subjetividade, principalmente de crianças?

Vera Iaconelli – Uma sociedade baseada no consumo como a nossa faz crer que o objeto consumido daria conta de satisfazer o desejo humano. A promessa da publicidade é que, ao adquirir esse ou aquele objeto, você alcançaria a satisfação. Como simplesmente não é possível, segue a promessa de que o próximo objeto o fará. E assim, sucessivamente, seguimos consumindo no autoengano de que o consumo aplacará nossa falta. Ter o último celular lançado no mercado torna-se imprescindível mas, passado um ano, esse já se tornou dispensável, até execrável.

Por outro lado, os objetos sempre agregaram valor aos sujeitos. Na lógica capitalista e consumista, os objetos adquiridos não só agregam valor social, como também são confundidos com a própria identidade do sujeito. Ou seja, você usa uma caneta para escrever, mas essa caneta precisa ter estampado um bonequinho da Disney ou marca reconhecida. Este algo a mais, desnecessário do ponto de vista prático, faz apelo a uma outra coisa: garantir que o sujeito, o proprietário, é “o cara”. O objeto está associado com quem é a pessoa. E esse é um outro grande perigo. Neste modelo, o que eu tenho diz quem eu sou. A humanidade sempre fez isso, sempre precisou se afirmar. Mas na sociedade do consumo, o sujeito é confundido com os objetos que tem. Eu não tenho objetos, eu sou alguém que tem objetos, eles dizem de mim.

 

CeC – Precisamos desvalorizar as coisas? Como seria isso? Explicar que um bonequinho de plástico não é nada além de um bonequinho de plástico?

VI – O ser humano sempre anseia, é um ser desejante e isso nos move. Um carro, a casa própria, casar, uma carreira, etc. Vamos desejando coisas. E vamos nos projetando e correndo atrás dessas coisas. Algumas dessas projeções vão ficando obsoletas, algumas conseguimos alcançar, outras não. O perigoso não é o desejo da criança pelo bonequinho de plástico. A gente que é mais velho consegue lembrar de objetos que almejávamos na infância. A gente sabe o significado desse desejo. O problema é que estamos em um período mais complicado. A criança mal deseja um objeto e já ganha. Às vezes os pais até antecipam esse desejo. Assim, ela não consegue formular o desejo, esperar seis meses, ganhar e brincar até estragar, para então, almejar outro objeto e fazer o luto do que estragou. Ou seja, fazer todo o processo de desejar, efetivamente conquistar e até perder.

 

CeC – Então é importante não atender a todos os desejos das crianças?

VI – Sim, claro. A função dos pais é ajudar a criança a lidar com seu corpo, seus impulsos, e a vida social. Quando a criança formula o desejo por X ou Y, ela vai descobrindo quem ela é também. Por exemplo, ela uma criança que prefere uma bola a uma boneca, ou roupas a um brinquedo. Isso fala um pouco dela. Mas se a criança é criada de forma que nunca tem tempo para esperar que algum desejo se formule, o risco é que ela demande furiosamente objetos para descartá-los até parar de demandar, pois nenhuma satisfaz. Maria Rita Kehl trabalha a questão do tempo e da depressão em seu livro o “Tempo e o Cão” lindamente. Porque, se os pais não sustentam o tempo da falta para a criança, o desejo não se formula e a ausência de desejo é a depressão. Quer dizer, há um atropelamento do desejo. Os objetos estão chegando muito rápido e as crianças estão descartando, quebrando, eliminando porque precisam ‘ficar sem’ para poder desejar. Por outro lado, elas ficam extremamente ansiosas de ficar sem e acontecer algo terrível, com medo do luto, do vazio.

 

CeC – Como enfrentar essa situação? Devemos discutir cultura consumista e depressão?

VI – Os pais estão muito perdidos e supondo coisas sobre a responsabilidade parental muito equivocadas. Muitas vezes eles pensam que a criança não pode se frustrar. Então, eles tentam fazer o melhor para a criança, mas eles não se dão conta de que é preciso deixar a criança sem, fazer a criança esperar. Muitas vezes eles acham que é imperativo do papel de pai preencher sem parar. Bom, tem o básico para o bem-estar, claro. O recém-nascido, por exemplo, precisa de um cuidado ostensivo. Mas mesmo o recém-nascido pode esperar um tanto para mamar. Esse é o paradigma que a Maria Rita Kehl usa para falar de alguns quadros depressivos crônicos: pais onipresentes, ansiosos demais, que não aguentam ver a criança chorar sob nenhuma circunstância. Os pais precisam ser sensibilizados sobre o papel deles. Precisamos fazer os pais entenderem que ajudamos a criança a lidar com a falta, sem a pretensão de eliminá-la, pois ela é constituinte.

 

CeC – E como lidar com este estímulo ao consumismo da perspectiva da responsabilidade dos agentes privados?

VI – Temos grandes interesses econômicos em jogo. Tem coisas que não se resolvem no nível dos pais, temos que fazer campanhas e mobilizar para que exista uma pressão social ou uma vontade política de enfrentar certos lobbies privados muito sérios. Com a sensibilização dos pais e da sociedade, a tendência é que as empresas, não em nome do bom mocismo, mas de interesses econômicos, se adaptem. A questão ecológica mudou várias empresas que continuam ávidas por lucro. A sustentabilidade acabou sendo o diferencial para alguns consumidores, e as empresas se ajustaram às expectativas. Podemos mostrar para os cidadãos que eles podem rejeitar certas formas de vender e, para as empresas, mostrar que a mudança de postura pode ter apelo para fidelizar o consumidor.

 

CeC – Como a publicidade infantil afeta as crianças?

VI – A criança absorve o mundo como uma esponja. Ela tem uma competência e uma inteligência para absorver o mundo. Ela percebe logo o valor dos objetos nas relações sociais, mas o faz sem capacidade crítica. A criança é capturada muito facilmente. Quando ela vê uma publicidade de um brinquedo que voa, é incapaz de entender que não é bem assim. Mas se ela viu na televisão, é como se isso bastasse. A publicidade abusa da credulidade infantil e seduz sem escrúpulos. São os pais que devem fazer a escolha do que oferecer aos filhos em qualquer âmbito: comida, roupa, brinquedos. Dentro dessa seleção prévia, desse filtro parental, a criança terá uma margem de escolha. Esse filtro, que os pais fazem e que só começou a existir a partir do século XVIII, chama-se infância.

 

*Vera Iaconelli é psicanalista, Doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo, membro da Escola do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, diretora do Instituto Gerar, autora do livro “Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna” (editora Annablume, 2015) e colunista da Folha de São Paulo.

Publicado em: 7 de junho de 2018

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