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Foto de um quadro com várias notas de dinheiro de países diferentes penduradas por alfinetes.

‘Siga o Dinheiro’

Foto de um quadro com várias notas de dinheiro de países diferentes penduradas por alfinetes.

‘Siga o Dinheiro’

*artigo de Martin Schmalzried publicado originalmente no site da escola The London School os Economics and Political Science | traduzido para o português por Paulo Padilha

Martin Schmalzried, Conselheiro de Política e Advocacia para a Confederação de Organizações Familiares da União Europeia (Confederation of Family Organisations in the European Union – COFACE), explora o poder e controle que as empresas privadas detêm sobre o uso e acesso à internet. Este artigo é resultado de uma oficina especial[1] realizada pela Media Policy Project (Projeto de Políticas de Mídia) e a Parenting for a Digital Future (Parentalidade para um Futuro Digital) sobre “Famílias e ‘tempo de tela’: desafios da auto-regulação da mídia” e da publicação de um informe sobre políticas relacionadas a famílias e ‘tempo de tela’, escrita por Alicia Blum-Ross e Sonia Livingstone. 

O modelo de negócio dominante na internet hoje em dia é dependente do tempo do usuário – quanto mais tempo um usuário passa utilizando um serviço, acessando um conteúdo, um game ou um aplicativo, mais receita ele vai gerar para o provedor de conteúdo ou o desenvolvedor do game através da exposição a comerciais, uso/venda dos dados gerados pelo usuário, ou pela compra de bens virtuais dentro do aplicativo.

A internet também é vista como uma ferramenta providencial, um grande equalizador que permite a efetivação de vários direitos humanos fundamentais, como a liberdade de expressão, e que ajuda a diminuir a desigualdade ao oferecer acesso a oportunidades para educação e trabalho/negócios.

Vários partidos interessados, incluindo governos, empresas e a sociedade civil, argumentam que devemos simplesmente aplicar uma filosofia de ‘laissez-faire’ à internet e ela se tornará cada vez mais um espaço de liberdade. Não surpreende que os defensores mais ferrenhos dessa ideia sejam as empresas de telecomunicações e suas abordagens de “deixe o mercado decidir”.

Veja também:
– Personagens infantis podem desaparecer de alimentos não saudáveis na Holanda
– 2016: um ano de conquistas históricas na luta contra o consumismo infantil
– 11 empresas anunciam novas diretrizes para publicidade infantil

Conteúdo de qualidade e controle editorial

Lamentavelmente, a internet está sofrendo uma transformação, resultado de uma combinação de fatores que incluem algoritmos e modelos de negócios online. Os algoritmos definem o que as pessoas vêm na internet, aumentando a visibilidade de certos conteúdos dentro do newsfeed de uma rede social ou nos resultados de uma ferramenta de pesquisa, o que inevitavelmente acaba distorcendo a experiência do usuário.

Enquanto não existe um jeito de driblar a ordenação algorítmica, os métodos utilizados para ordenar o conteúdo causam muitas preocupações. Quais critérios são usados para ‘reforçar’ a visibilidade de um conteúdo (e diminuir a visibilidade de outros)? Existe algum critério de ‘qualidade’ ou se um conteúdo é ‘positivo’?

Essas considerações são especialmente relevantes para serviços ‘projetados’ para crianças, como o YouTube Kids – os vídeos que são destacados como recomendações não chegam lá ‘sem querer’. Talvez não exista um limite técnico ou prático para propostas de métodos alternativos de ‘ordenação’, mas certamente existe uma forte resistência por parte das plataformas, já que os algoritmos de ordenação permitem que eles possam otimizar o conteúdo publicitário ou aumentar a interação/’stickiness’ (aderência) do usuário – por exemplo, quando se pesquisa por ‘gato’, por quê apareceria um vídeo de ‘unboxing’ de um brinquedo com gatinhos em primeiro lugar ao invés de um vídeo educacional sobre gatos?

Modelos de negócios online que dependem do tempo do usuário para gerar receitas também contribuem para a degradação do conteúdo na internet. Qualquer produtor de conteúdo que queira ganhar dinheiro precisará aumentar o tempo que os usuários passam com o seu conteúdo/serviço. Em casos extremos, isso leva à criação de técnicas de ‘click baiting’ que usam imagens/vídeos/manchetes chamativas para atrair usuários a clicar e serem redirecionados para páginas cheias de publicidade. E qualquer hora que um provedor de conteúdo/serviço precisa tomar uma decisão editorial em relação ao conteúdo, as prioridades serão a otimização de estatísticas de visualização e das taxas de salto ou aderência, quase sempre em detrimento da ‘qualidade’.

Algumas pessoas vão dizer que a qualidade de um site segue seu nível de aderência ou dados de visualização, mas normalmente esse não é o caso. Se produzir e postar um vídeo de ‘gatinhos engraçados’ pode gerar 5 milhões de visualizações enquanto um vídeo educacional sobre a natureza pode gerar 500.000, qual programa acabará sendo produzido? Como essa lógica vai impactar na criatividade? Que fim teria um Shakespeare nos dias de hoje com um modelo de negócios como esse que, antes de mais nada, tenta apelar para uma audiência massiva ao invés de produzir arte pela arte?

Quando procuramos minimizar os riscos e aumentar as oportunidades para as crianças na internet, não podemos ignorar esses fatos. Se queremos que as crianças realmente se beneficiem das oportunidades oferecidas pela internet, precisamos prestar mais atenção sobre quem e o quê atrai os holofotes da internet, e quem está tomando as ‘decisões editoriais’. Muitas pessoas achariam essa ideia ridícula, já que a internet agora está supostamente nivelada, com conteúdo criado por usuários dominando e as ‘decisões editoriais’ sendo limitadas à censura de conteúdos que violam os termos de uso.

A raposa e o corvo, novamente

E a solução para esses problemas é … educação! Se todos os pais tivessem acesso aos recursos, conselhos e orientações apropriados sobre os riscos de oportunidades da internet, as experiências das crianças na internet seriam perfeitas e todos os problemas estariam resolvidos. Ninguém se atreveria a dizer uma coisa dessas, mas muitos chegam perto. Empresas privadas têm muitos motivos para promover essa noção, já que é um dos argumentos mais fortes para adiar qualquer medida de política ou regulação.

Como comparação, empresas de serviços financeiros diriam que a educação financeira deveria ser o foco para prevenir o alto endividamento, e o agronegócio diria que informar as pessoas sobre hábitos alimentares saudáveis deveria ser a prioridade na luta contra a obesidade e na diminuição de doenças crônicas … ignorando o fato que essas duas indústrias utilizam campanhas incrivelmente anti-educacionais para levar consumidores a agirem impulsivamente (obtenha uma linha de crédito para tirar as férias que você tanto merece) ou satisfazerem suas necessidades de reconhecimento social através da comida (beba um certo refrigerante e você será popular entre os seus amigos), portanto aumentando suas receitas.

Empresas privadas basicamente apelam para a tática da raposa contratada para tirar o queijo da boca do corvo. Ao fingir que consumidores/usuários são inteligentes, bem informados e cheios de recursos, isso permite que eles os manipulem melhor para ceder o controle de seus dados, aceitar termos de uso abusivos, ou extrair grandes quantias de dinheiro através de modelos de negócio antiéticos como o ‘jogue de graça’ ou ‘compras dentro do aplicativo’.

A mesma lógica prevalece sobre a questão da publicidade infantil. Publicitários oferecem ‘materiais didáticos’ através de programas para crianças como o MediaSmart, e elogiam sua inteligência e resistência à publicidade para depois sobrecarregá-las com técnicas de publicidade ainda mais insidiosas.

Dito isso, a educação sempre será uma necessidade intrínseca, para além de qualquer objetivo específico de políticas públicas, mas é preciso encontrar um equilíbrio entre a necessidade de educar/informar/empoderar e a necessidade de proteger e influenciar o ambiente para que seja o mais propício possível para experiências positivas para todos. A educação nunca deve substituir medidas necessárias de política ou regulação.

Uma metáfora provocativa seria: deveríamos focar mais no treinamento de pessoas para evitar minas em um campo minado, ou focar em retirar as minas do campo?

Uma questão simples, mas complexa

Afinal, que tipo de internet queremos para as nossas crianças? Dizem que a internet ‘não tem dono’ e que, na visão de muitos, ela é a encarnação ‘definitiva’ de um bem público. Ela já foi e ainda está sob o risco de controle governamental, mas pode-se dizer que está ainda mais sob o risco de cair no controle de um punhado de empresas privadas dominantes.

[1] Um resumo deste evento sobre famílias e ‘tempo de tela’ foi publicado pela Media Policy Project e a Parenting for a Digital Future, e pode ser encontrado aqui.

Foto: Moyan Brenn via Flickr

Publicado em: 23 de janeiro de 2017

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